ou o porquê de se deixar de usar uma palavra para utilizar outra.
A palavra manutenção foi sequestrada do vocabulário pelos profissionais do restauro nas instituições públicas de preservação dos bens culturais construídos, assim como no âmbito da Academia.
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A imagem usada no banner de chamada do podcast tem o objetivo de causar espanto, reação e até curiosidade em busca de um retorno positivo junto aos seguidores do meu perfil de Gestão de Restauro. Trata-se de um apelo à atenção dos ouvintes e leitores, sinalizando rapidamente que há uma disfunção entre a palavra e a figura. Na verdade, é uma estratégia midiática com base na psicolinguística para trazer o assunto à discussão e à reflexão.[1]
Sim, a palavra manutenção foi sequestrada do vocabulário pelos profissionais do restauro nas instituições públicas de preservação dos bens culturais construídos, assim como no âmbito da Academia. Esta é uma denúncia grave e eu vou explicar aqui o porquê essa palavra foi confiscada da retórica e da prática.
Com 50 anos de proximidade e atuação na área da preservação dos monumentos e conjuntos históricos e artísticos, não tenho lembrança de ter ouvido a palavra manutenção sair a miúde da boca daqueles que se dedicavam e que se dedicam à proteção das edificações de valor cultural. Desde quando comecei a frequentar a distrito regional do IPHAN em 1970, que se localizava numa casa de portas e janelas à Rua da União no Recife, essa palavra era omitida, ou melhor, não era usada, não fazendo parte do vocabulário dos funcionários e amigos daquela repartição. Em seu lugar, todos repetiam constantemente o termo restauração. Embora naquela repartição, dirigida então pelo engenheiro Ayrton de Almeida Carvalho, assim também como em outros distritos, com parcos recursos no orçamento da União, as intervenções de restauro eram massivas, mesmo sendo realizadas em etapas ano após ano[2].
A conduta de se privilegiar a restauração em vez da conservação[3] por meio das manutenções periódicas, continuou, ou melhor, acentuou-se após serem criados os grandes programas no âmbito do Governo Federal[4]. As instituições estaduais, que foram sendo criadas a partir da década de 1970, seguiram as premissas da restauração na contramão das recomendações internacionais da preservação das edificações de valor cultural. Invoco como testemunha o rol de ações realizadas pelo IPHAN, no período compreendido entre o final da década de 1930 e meados da década de 70, onde são visíveis as intervenções cirúrgicas severas nas edificações para se obter feições e percepções estéticas mais adequadas à retórica da vanguarda modernista que inspirava os dirigentes e os técnicos da primeira hora do IPHAN. O termo restauração era tão aceito e utilizado até mesmo quando a Entidade realizava pequenas intervenções de substituições de madeiras, telhas e outros elementos dos telhados. Não se fazia uso da palavra manutenção, inclusive quando se busca este termo na legislação pertinente ao Decreto-Lei no 25/1937[5], ela só aparece para garantir a difusão de museus, cursos e recursos de fundos. Os que faziam o IPHAN acreditavam que o termo manutenção não pertencia à Instituição, mesmo porque essa era uma atitude vista como responsabilidade exclusiva do proprietário da coisa tombada – o que estava correto, mesmo com o atenuante do disposto no art. 19, do mencionado decreto que determina: “O proprietário de coisa tombada, que não dispuser de recursos para proceder às obras de conservação e reparação que a mesma requerer... O diretor do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional mandará executá-las, a expensas da União”.
Neste sentido, o IPHAN realizava pequenos serviços de manutenções sob demanda das paróquias, prefeituras, particulares ou resultado das visitas de fiscalização que realiza periodicamente, embora não usasse a palavra manutenção nem conservação, conforme eu mesmo presenciei nas inúmeras vezes que acompanhei Ferrão[6] aos serviços que se realizavam nos bens tombados, localizados nos estados da sua jurisdição – Alagoas, Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte. Naquela época, o 1º DR[7] do IPHAN dispunha em seu quadro mestres artífices dos ofícios tradicionais da construção[8] para realização direta dos trabalhos especializados.
Foi o CECI – Centro de Estudos Avançados da Conservação Integrada, gerado por um grupo de professores, sob a liderança de Silvio Zancheti no Mestrado de Desenvolvimento Urbano – MDU/UFPE, a partir de 1997, que trouxe as palavras manutenção e conservação para o uso diário, inicialmente no meio acadêmico, através dos cursos ITUC/AL, Gestão de Restauro, MARC/AL[9] e no âmbito das práticas quando elaborou planos, projetos e obras. Destaco aqui os casos do Plano Diretor do Conjunto Franciscano de Olinda (2005), o Plano Diretor de Conservação Integrada da Basílica da Penha (2006) e os serviços nos componentes artísticos da Ordem Terceira de São Francisco de Olinda, realizados nos forros da Sacristia e Capela dos Noviços, assim como no retábulo da Capela de São Roque (2007–2013)[10]. No Curso ITUC/AL foram amplamente divulgadas as principais recomendações da Declaração de Amsterdã, que era mantida em prateleiras de bibliotecas, quase desconhecida no Brasil, desde o encontro de especialistas de 25 países europeus para comemorar o Ano do Patrimônio Arquitetônico em 1975[11]. Todas as edições deste curso destacaram:
A importância do patrimônio arquitetônico e a legitimidade de sua conservação são agora melhor percebidas. Sabemos que a preservação da continuidade histórica no meio ambiente é essencial para a manutenção ou criação de um ambiente vivo que permita ao homem encontrar sua identidade e sentir uma sensação de segurança diante de mudanças brutais no meio ambiente. Na sociedade, um novo urbanismo busca redescobrir os espaços fechados, a escala humana, a interpenetração de funções e a diversidade sociocultural que caracteriza os tecidos urbanos antigos. Mas, também descobrimos que a conservação dos edifícios existentes contribui para a economia de recursos e a luta contra o desperdício, uma das grandes preocupações da sociedade contemporânea. Foi demonstrado que edifícios antigos podem receber novos usos que atendem às necessidades da vida contemporânea. Além disso, o fato de a conservação exigir artistas e artesãos altamente qualificados, cujo talento e know-how deve ser mantido e transmitido.
Os professores Tomás Lapa e Sílvio Zancheti (2002, p. 32), traduzem bem em suas aulas no ITUC/AL os pilares daquela declaração quando citam em suas aulas que o patrimônio é uma riqueza social; sua manutenção, portanto, deve ser uma responsabilidade coletiva. E que, a conservação do patrimônio deve ser considerada como o objetivo principal da planificação urbana e territorial.[12] Os cursos Gestão de Restauro e o MARC/AL também focaram no privilégio das manutenções e conservação do componentes e elementos construtivos e artísticos das edificações, priorizando o uso de materiais e técnicas tradicionais, usando as habilidades e saberes das mãos dos artesãos e dos mestres de ofícios.
Entretanto, entorno do ano de 2010, os esforços de dar protagonismo à palavra manutenção, fazendo valer juntos aos profissionais e gestores a importância da conservação, mostraram-se em vão – “foram por água abaixo”, conforme o adagio popular. Houve o sequestro da palavra por grupos políticos no âmbito do Sul do país que acharam mais adequado dar personalidade, personificar a figura do gestor público de plantão quando no exercício das suas funções e obrigações de manter as coisas da cidade e das construções livres de danos, ou seja, quando das atividades de caráter preventivo como as ações básicas de limpezas, capinações, pinturas, pequenos reparos, trocas de elementos com vistas a manter em funcionando equipamentos e componentes etc.. E eles encontraram no Aurélio (o dicionário) a palavra zeladoria, cujo significado remete ao ofício ou cargo de zelador (1) e ainda à repartição onde trabalha o zelador (2)[13].
A escolha dessa palavra não rasurou a normatividade da língua portuguesa, criando um neologismo, apenas privilegiou zeladoria em vez de manutenção. Mas acredito sim que houve desvinculamento epistêmico, não por abandono ou ignorância do que já foi institucionalizado por todas as entidades internacionais de preservação. Explico: a questão é epistêmica porque desvincula o fundamento genuíno do conceito da palavra manutenção, que se baseia nos cuidados indispensáveis para a permanência das funcionalidades das coisas, mantendo-as livres de danos. A palavra manutenção não é identitária, isto é, ela não identifica uma pessoa ou um grupo particular de pessoas, diferenciando-as dos demais (MIGNOLO, 2008)[14]. Já, a palavra zeladoria tem este poder! Não se trata de um eufemismo, é apenas uma estratégia de linguagem política contemporânea, atuando nos referentes da realidade, atribuindo-lhe bons sentimentos à palavra, no caso o zelo ou os cuidados, os “desvelos pelo bem alheio”[15].
A palavra zeladoria traz a sensação de pertencimento à grupos pré-determinados que usam ou deixam de usar os significados que se esperam, de modo a preencher um novo esquema lógico com os objetos, com os referenciais da realidade. Embora a palavra zeladoria tenha um parentesco, mas não uma intimidade com manutenção, ela desvia subliminarmente a atenção à pessoa ou ao grupo em vez das ações da sua conduta pelos quais é responsável. Em oposição, a palavra manutenção tem um poder unificador, pois é usada pelas línguas mais faladas no ocidente, como por exemplo pelo inglês - maintenance, pelo espanhol - mantenimiento, pelo italiano - manutenzione, pelo francês maintiennent. E isso é importante para conservar um senso de compreensão, de entendimento. O mesmo não ocorre com o termo zeladoria.
Sob o olhar da semiótica, há os testemunhos dos dicionários da língua portuguesa que remetem, unânimes, o termo zeladoria à “repartição onde há funções de fiscalização” e zelador ao “empregado municipal que fiscaliza a execução das posturas”.[16]
Eu observo, e isto é a minha opinião, que a ampliação da paralaxe semântica da palavra zeladoria surgiu no Sul, talvez em São Paulo, recortada de um contexto comum aos paulistanos – a vida nos edifícios e condomínios. Faz sentido, vejam que é o zelador a pessoa, o funcionário, encarregado de cuidar das coisas de um prédio para manter a normalidade do funcionamento das suas atividades. É à zeladoria que as pessoas recorrem para que sejam solucionados os problemas isolados ou coletivos. Quanto mais atencioso, hábil e eficaz o zelador, mais admiração e sucesso faz entre as pessoas a quem serve. É assim que eu vejo o porquê, o motivo do sequestro da palavra manutenção pela zeladoria. Em nosso estado de ser da política brasileira há mais valia, há mais visibilidade na pessoa que faz do que nas suas ações em si!
Obrigado... Deixe seus comentários, façam perguntas, terei muito prazer em responder e debater sobre este tema.
Jorge Eduardo Lucena Tinoco
Olinda, 29 de abril de 2020
Referências:
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[1] Leiam os trabalhos de Tânia Ferreira Rezende, doutora em Estudos Linguísticos e professora da Universidade Federal de Goiás (UFG).
[2] Era comum os recursos orçamentários para investimentos dessa Entidade serem liberados no último trimestre de cada ano, que obrigava se fazer obras apenas por etapas de serviços.
[3] Observe que desde 1964, o Brasil (IPHAN) já havia subscrito a Carta de Veneza que recomendava a conservação como principal ação dos profissionais, sendo a restauração “uma operação que deve ter caráter excepcional”. Fonte: . Acesso em: abr. 2020.
[4] Em 1973 foi criado o Programa de Reconstrução das Cidades Históricas do Nordeste pela Secretaria da Presidência da República, posteriormente ampliado para as demais cidades, passado denominar-se Programa de Cidades Históricas, sendo investidos 17,3 milhões de dólares entre 1973 a 1979 (Fonte: IPHAN). Na década de 2000 foi criado o Programa Monumenta/BID, também para fins de preservação do patrimônio cultural construído, com vistas ao incremento de ações sociais, particularmente no âmbito da indústria do Turismo, sendo injetados US$ 150 milhões de dólares (Fonte: CGU – Controladoria Geral da União). O Programa de Aceleração do Crescimento - PAC, que se deu em final de 2007, o Governo Federal estendeu essa ação para a preservação do patrimônio cultural construído, abrindo uma linha denominada PAC/Cidades Históricas, com recursos da ordem de R$ 1,6 bilhões.
[5] Veja legislação em: . Acesso em: abr. 2020.
[6] José Ferrão Castelo Branco (*1920†2001). Principal auxiliar do 1º Distrito do IPHAN (após 5ª Diretoria Regional e 5ª SR/SPHAN/pró-Memória). Foi o braço direito de Dr. Ayrton de A. Carvalho por vários anos. Ele iniciou seus trabalhos naquela Repartição no final da década de 1930, começando com ajudante de obras. Por sua inteligência privilegiada logo recebeu maiores responsabilidades dos primeiros mestres do IPHAN, tais como Leonardo Silva (mestre Lola), José Figueiredo, João Honório. Passou para oficial pedreiro, adquirindo conhecimentos em quase todos os ofícios tradicionais da construção. No final da década seguinte (1940), já era um encarregado de obras e posteriormente colaborador importante na condução nas principais obras sobre a responsabilidade técnica do chefe da Repartição, engenheiro Ayrton de Almeida Carvalho. Na época da SPHAN/Pró-Memória atuava com consultor da Entidade dando assistência assídua ao Aloísio Magalhães, e representando Dr. Ayrton em todas as solenidades públicas. Conheci Ferrão em 1974 e ele gostou de mim logo nos primeiros contatos porque eu perguntava muito e demonstrava algum conhecimento de obras pelo fato de ter frequentado na infância/adolescência os canteiros de obras do meu pai.
[7] O 1º Distrito Regional do IPHAN abrangia Alagoas, Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte. Posteriormente, na gestão de Renato Soeiro, as unidades do IPHAN em outros estados passaram a ser denominadas de “Diretoria Regional”, e a que tinha sede em Recife passou-se a denominar 5ª DR.
[8] Tive a oportunidade de conhecer e de trabalhar com alguns a partir dos meados da década de 1970 até o final da seguinte (1980). Alguns com idades avançadas como os mestres José Figueiredo, João Honório, Lola (Leonardo Silva), Caboclinho, José Floriano, Antonio Silva, conhecido por todos como Cantel.
[9] Curso de Gestão do Patrimônio Cultural Integrado ao Planejamento Urbano da América – Latina (ITUC/AL), disponível em: ; Curso de Gestão e Prática de Obras de Conservação e Restauro do Patrimônio Cultural (Gestão de Restauro) disponível em: ; Curso Latino Americano sobre a Conservação da Arquitetura Moderna (MARC-AL), disponível em: . Acesso em: abr. 2020.
[10] Todos trabalhos e textos para discussão encontram-se disponíveis no site do CECI – www.cec-br.org.
[11] Disponível em: . Acesso em: abr. 2020.
[12] LAPA, Tomás de A. et ZANCHETI, Sílvio M., Conservação integrada: Evolução conceitual. Aula 2, Curso ITUC/AL. Ed. CECI, 2002, ISBN 85-7315-177-3. Revisado e ampliado em 2009, disponível apenas para alunos matriculados em: .
[13] FERREIRA, Aurélio B. de H. Novo Dicionário da Língua Portuguesa, 2ª edição, Ed. Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1997.
[14] MIGNOLO, Walter D.. Desobediência Epistêmica: A Opção Descolonial e o Significado de Identidade em Política, Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Literatura, língua e identidade, no 34, p. 287-324, 2008. Disponível em: . Acesso em: abr. 2020.
[15] Zelar – Tratar com zelos (desvelos pelo bem alheio), ter ciúmes. Novo Diccionario Portatil da Lingua Portugueza, de M. M. Dantas, ed. N. Moré, Porto, p. 743, 1858.
[16] Manutenção – Ato ou efeito de manter. Gerencia, administração: a manutenção de uma fábrica. (FIGUEIREDO, Candido de, Diccionário da Língua Portuguesa. Ed. Livraria Clássica, vol. II, vol. II, p. 111, Lisboa, 1913; zelar – Ter cuidado, com ciúme. Diligência em qualquer serviço (FIGUEIREDO, idem, p. 871); conservar – (Lat. conservare) Manter no estado actual. Manter no seu lugar. Fazer durar. Guardar cuidadosamente. Preservar. Continuar a têr. (FIGUEIREDO, Idem, vol. I, p. 507); zeladoria – repartição onde há funções de fiscalização (FREIRE, Laudelino, Grande e Novíssimo Dicionário da Língua Portuguesa. Ed. A Noite, vol. 5, p. 5259, Rio de Janeiro, 1939); zelador – Empregado municipal que fiscaliza a execução das posturas (FONSECA, Simões da, Dicionário Enciclopédico da Língua Portuguesa, Ed. Livraria Garnier, p. 1201, Rio de Janeiro, 1926.
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